segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A polêmica do crucifixo nas escolas públicas italianas

Em artigo publicado na Folha de S. Paulo (Tendências/Debates, 7/11), defendi a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos que determinou a retirada dos crucifixos das escolas públicas italianas, pois assegura o direito dos pais de educarem os filhos de acordo com suas próprias convicções religiosas, conforme a Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950). Certamente, a Corte não levou em conta apenas a liberdade religiosa da requerente (senhora Lautsi), mas também de todos os pais ateus, agnóstico e de outras confissões religiosas, cujos filhos frequentam escolas públicas na Itália. Não se trata, portanto, de fazer valer o direito de apenas uma única pessoa em face de uma maioria religiosa católica.

No sistema democrático, o direito da maioria não é superior ao direito da minoria. Tanto a maioria quanto a minoria possuem exatamente os mesmos direitos. A corte de Estrasburgo reconheceu o direito individual à liberdade religiosa, independentemente de o individuo pertencer à minoria ou à maioria religiosa. Democracia não admite a ditadura da maioria. Atribuir à maioria direitos superiores aos da minoria seria uma forma de negar que todos os cidadãos possuem os mesmos direitos. A universalidade dos direitos humanos é legado das declarações liberais do século XVIII, como a Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776. Assim, o art. 1º da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 estabelece que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.

O direito à liberdade religiosa da minoria tem o mesmo valor do da maioria. Assim, se uma confissão tem o direito de ter seus símbolos religiosos exibidos pelo Estado nas escolas públicas, as demais confissões também teriam o mesmo direito. Por outro lado, o Estado, no contexto laico, tem o dever de se manter neutro diante do pluralismo religioso existente na sociedade, sem favorecer uma religião, ainda que majoritária, em detrimento das demais confissões.

A decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos é justa e protege o direito individual à liberdade religiosa. Ela não impede que os indivíduos, as igrejas e as confissões religiosas exerçam o direito de exibir seus símbolos. Proíbe apenas que o Estado Italiano exiba símbolos religiosos nas salas de aula das escolas públicas, pois assim estaria promovendo uma única religião e negando a educação laica para seus cidadãos.

Se a Corte de Estrasburgo negasse o direito à liberdade religiosa da senhora Lautsi e de suas crianças, estaria, por conseguinte, privilegiando o relativismo cultural em detrimento da universalidade dos direitos humanos. A identidade cultural do povo italiano tem sido utilizada para reprovar a decisão da Corte. Nessa esteira, contudo, cumpre relembrar que a tese da universalidade dos direitos humanos saiu vencedora na famosa conferência de Viena de 1993. Assim, não se pode violar o legítimo direito à liberdade religiosa em nome da identidade cultural do povo italiano.

A decisão da Corte Europeia reconhece o direito fundamental à liberdade religiosa do indivíduo e leva a sério a separação entre a Igreja Católica e o Estado que foi estabelecida no art. 7, alínea 1, da Constituição Italiana de 1947. Ademais, leva a sério o direito internacional e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos da qual a Itália é signatária. Por isso, não se trata de decisão hostil à religião.

A Corte de Estrasburgo não poderia de forma alguma violar o direito à liberdade religiosa com o argumento de salvaguardar a cultura europeia. Na realidade, a sentença está de acordo com o legado maior deixado pelo próprio cristianismo: separação entre a Igreja e o Estado, tolerância, fraternidade, dignidade da pessoa humana, direitos humanos e, consequentemente, igual liberdade de pensamento, de crença e de religião para todos. Nesse sentido, ao ser entrevistado pelo jornalista Heródoto Barbeiro, no jornal da rádio CBN, eu afirmei que cristianismo é muito mais do que crucifixo pendurado na parede. Importa relembrar e promover esses valores que são universais. Mesmo alguns daqueles pais fundadores da nação norte-americana – Estados Unidos –, que não eram cristãos, entenderam a validade universal desses ensinamentos cristãos e ajudaram a erigir a metáfora do muro de separação entre a religião e o Estado, como pressuposto de um Estado democrático, fraterno e pluralista.

Por fim, não se pode dizer que a decisão de Estrasburgo estaria em consonância com a concepção de Estado ateu. Isso porque, é absolutamente condizente com a neutralidade do Estado diante do fenômeno religioso. A decisão não tende, portando, nem à religião nem tampouco ao ateísmo: é neutra, assim como o Estado laico deve ser neutro tanto na Itália quanto no Brasil.

(Aldir Guedes Soriano, advogado e membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP. É coordenador da obra coletiva Direito à Liberdade Religiosa: desafios e perspectivas para o século XXI, Editora Fórum, 2009)


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(Criacionismo)

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