A primeira vez que li o conto “Amor”, de Clarice Lispector, pensei: o que esse título tem a ver com a história? Esperava uma narrativa romântica, dessas mamão com açúcar. Mas era sobre uma dona de casa que, de dentro do bonde, vira um cego mascando chicletes. A visão daquele homem foi epifânica para a personagem, seu mundo se desconstruiu a partir de então. Demorou, mas compreendi o nome do texto. Não com o intelecto, mas com o coração. Faz algum tempo, estava em um ônibus a caminho da faculdade, assim como a personagem em um bonde. Era um dia de frio, desses em que o vento nos abraça e nos congela. Olhei pela janela e lá estava ela: uma prostituta. Era uma mulher comum, de uma beleza cansada e envelhecida pelo sofrimento, com ar de quem carece de tudo. Completamente sem vontade, seu corpo se insinuava, mecânica e artificialmente, para todos os carros que passavam. Poucos olhavam verdadeiramente para a mulher e ela, para ninguém olhava verdadeiramente. Estava frio. Ela usava uma sandália, seus pés deviam de estar gelados. Usava uma calça amarela. Seu olhar era abatido, perdido no nada, ou talvez perdido em tudo que ela tinha: ela mesma.
Senti amor. Tive vontade de descer do ônibus e abraçá-la. Tive vontade de levá-la para casa e lhe dar uma de minhas meias de lã. Tive vontade de lhe oferecer minha cama e um prato de sopa bem quentinho. Eram dez horas da manhã e pensei que talvez ela estivesse na rua desde a noite anterior. Talvez estivesse com fome, com frio, sem dinheiro no bolso para tomar um café. Talvez tivesse sido agredida por algum homem. Não, homem não. Um ser capaz de agredir uma mulher como ela, tão doce e indefesa, não pode ser chamado de Homem.
Então compreendi o nome do conto: Amor! É isso, só pode ser amor... não me esforcei para amá-la, simplesmente aconteceu. Mas eu não fiz nada com esse amor. Não desci do ônibus. Não lhe dei pão. E esse foi meu grande erro. Senti a presença de Deus me invadir de súbito, senti doçura no meu próprio olhar. Mas onde estava Deus para aquela mulher? Acho que não estava. Ele não estava lá porque muitos de nós, que batemos no peito dizendo “sou cristão”, não estávamos lá para abraçá-la. Porque não é só com palavras que mostramos Deus, mas com atitudes. Atitudes que muitas vezes somos covardes para tomá-las. Pensei nas inúmeras vezes em que “damas honestas” viram o rosto para essas moças de vida nada fácil. Muitas se acham melhores do que elas, mais filhas de Deus. Mas Ele não faz acepção de pessoas, e essas prostitutas tem mais chance de perdão do que essas “damas”. Quem a si mesmo se exaltar será humilhado (Mateus 23:12), e não nos esqueçamos de que muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros (Mateus 19:30). Pensei nos homens que olham essas moças na rua como se elas fossem um grande mictório disponível para aliviar suas necessidades. Meu coração se angustiou. Já havia sentido tristeza e indignação ao ver mendigos e crianças nas ruas, mas o que senti naquele dia foi incomparável. Eu senti amor por um próximo que eu nem conhecia, um próximo que parecia tão distante.
Assim como no conto de Clarice Lispector, olhar uma pessoa me abalou. Mas Freud explica, ele sempre explica. É a alteridade, o outro sou eu, eu sou o outro. Nos construímos como sujeitos a partir de outro ser e nos espelhamos nele. Ou então é o “estranho familiar”, diria ele, aquilo que deveria ficar escondido nas profundezas do indivíduo, recalcado, distanciado, alheio, mas vem à tona, em algum momento, como algo familiar com o qual nos identificamos. Pode ser isso. Pode ser que eu tenha me angustiado porque sou mulher e vi a mim mesma no rosto daquela prostituta.
Porém, gostaria que me explicassem uma coisa: Quem colocou em nós esse sentimento de amor pelo outro? Quem pode me mandar o DNA do medo, do amor, da felicidade? Não, não quero pesquisas que me mostrem o córtex cerebral, nomes de hormônios e substâncias responsáveis por esses sentimentos. Não quero a reação, eu quero a causa. Se ninguém puder me enviar, eu tenho um palpite: é o toque de Deus.
(Elisabete Ferraz Sanches, professora graduada em Letras pela USP, pós-graduada em Português: Língua e Literatura pela UniSant’Anna e mestranda em Literatura Brasileira pela USP)
Senti amor. Tive vontade de descer do ônibus e abraçá-la. Tive vontade de levá-la para casa e lhe dar uma de minhas meias de lã. Tive vontade de lhe oferecer minha cama e um prato de sopa bem quentinho. Eram dez horas da manhã e pensei que talvez ela estivesse na rua desde a noite anterior. Talvez estivesse com fome, com frio, sem dinheiro no bolso para tomar um café. Talvez tivesse sido agredida por algum homem. Não, homem não. Um ser capaz de agredir uma mulher como ela, tão doce e indefesa, não pode ser chamado de Homem.
Então compreendi o nome do conto: Amor! É isso, só pode ser amor... não me esforcei para amá-la, simplesmente aconteceu. Mas eu não fiz nada com esse amor. Não desci do ônibus. Não lhe dei pão. E esse foi meu grande erro. Senti a presença de Deus me invadir de súbito, senti doçura no meu próprio olhar. Mas onde estava Deus para aquela mulher? Acho que não estava. Ele não estava lá porque muitos de nós, que batemos no peito dizendo “sou cristão”, não estávamos lá para abraçá-la. Porque não é só com palavras que mostramos Deus, mas com atitudes. Atitudes que muitas vezes somos covardes para tomá-las. Pensei nas inúmeras vezes em que “damas honestas” viram o rosto para essas moças de vida nada fácil. Muitas se acham melhores do que elas, mais filhas de Deus. Mas Ele não faz acepção de pessoas, e essas prostitutas tem mais chance de perdão do que essas “damas”. Quem a si mesmo se exaltar será humilhado (Mateus 23:12), e não nos esqueçamos de que muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros (Mateus 19:30). Pensei nos homens que olham essas moças na rua como se elas fossem um grande mictório disponível para aliviar suas necessidades. Meu coração se angustiou. Já havia sentido tristeza e indignação ao ver mendigos e crianças nas ruas, mas o que senti naquele dia foi incomparável. Eu senti amor por um próximo que eu nem conhecia, um próximo que parecia tão distante.
Assim como no conto de Clarice Lispector, olhar uma pessoa me abalou. Mas Freud explica, ele sempre explica. É a alteridade, o outro sou eu, eu sou o outro. Nos construímos como sujeitos a partir de outro ser e nos espelhamos nele. Ou então é o “estranho familiar”, diria ele, aquilo que deveria ficar escondido nas profundezas do indivíduo, recalcado, distanciado, alheio, mas vem à tona, em algum momento, como algo familiar com o qual nos identificamos. Pode ser isso. Pode ser que eu tenha me angustiado porque sou mulher e vi a mim mesma no rosto daquela prostituta.
Porém, gostaria que me explicassem uma coisa: Quem colocou em nós esse sentimento de amor pelo outro? Quem pode me mandar o DNA do medo, do amor, da felicidade? Não, não quero pesquisas que me mostrem o córtex cerebral, nomes de hormônios e substâncias responsáveis por esses sentimentos. Não quero a reação, eu quero a causa. Se ninguém puder me enviar, eu tenho um palpite: é o toque de Deus.
(Elisabete Ferraz Sanches, professora graduada em Letras pela USP, pós-graduada em Português: Língua e Literatura pela UniSant’Anna e mestranda em Literatura Brasileira pela USP)
(Criacionismo)
0 comentários:
Postar um comentário