quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Deus: a imprensa informa ou desinforma?

O bom artigo de Eugênio Bucci – “Notícias sobre a inexistência de Deus” –, além de mostrar que a alegada notícia não é mais algo tão bombástico quanto se pensa, pode oferecer outra reflexão. Estão os jornalistas, de modo geral, devidamente preparados para lidar com a questão filosófica da existência ou inexistência de Deus? Nos últimos anos, na esteira dos lançamentos de autores como Sam Harris, Richard Dawkins, Christopher Hitchens e outros profetas do ateísmo moderno, o imbróglio teológico veio com força às pautas. E a aceitação passiva de certas declarações tem demonstrado que os profissionais de imprensa não estão preparados para lidar com um assunto que, não é todo mundo que sabe, possui alto grau de sofisticação teórica. É possível que o despreparo venha de uma visão obtusa da filosofia como atividade desprovida de rigor. Ou até mesmo de um desconhecimento da história do tratamento filosófico da questão – enfim, má realização do dever de casa.

O resultado disso tudo é desinformar. Quando José Saramago diz em entrevista ao Estado de S. Paulo que “Deus não existe fora da cabeça das pessoas que nele creem”, está comprometido com uma tese metafísica altamente controversa e nem um pouco nova. O ar explosivo da frase do escritor perde um pouco de sua força quando nos damos conta de que Anselmo, já no século 11, considerou a diferenciação entre entidades que existem somente na imaginação e aquelas que existem tanto na imaginação quanto na realidade. Deus, para Anselmo, existe tanto na imaginação quanto na realidade. Posteriormente, outros filósofos tentaram desenvolver o pensamento de Anselmo ao longo da história. Ora, se o jornalista que entrevistou Saramago já sabia da posição do escritor, poderia ter levantado a objeção de que a afirmação dada não é consensual entre os estudiosos do assunto.

A frase seguinte, dita na Itália, também merece consideração: “Que Ratzinger tenha a coragem de invocar Deus para reforçar seu neomedievalismo universal, um Deus que jamais viu, com o qual nunca se sentou a tomar um café, demonstra apenas o absoluto cinismo intelectual da personagem.”

Parece que Saramago só consideraria como evidência verdadeira da existência de Deus aquela que nos tocasse os sentidos. Um estudo filosófico sério nos diria que não necessariamente. A questão toda é, novamente, de fundo metafísico e sua implicação principal é saber se Deus é uma entidade necessária na estrutura da realidade. Por “necessário”, dentro do jargão, entendemos algo que existe e não poderia não existir. A disposição de Deus para tomar um café com o papa é algo de importância secundária. Em outras palavras, não precisamos captar Deus para que sua existência seja verdadeira.

É possível que esta concepção, digamos, materialista da evidência, seja resquício de um senso comum que considera a existência de Deus um assunto pertinente somente às ciências empíricas, esquecendo a importante contribuição que o estudo sistemático da metafísica pode oferecer. É claro que um jornalista ao lidar com o assunto não precisa estudar conceitos modais como necessidade ou possibilidade, inerentes à metafísica. Mas seria proveitoso para qualquer jornalista presente no momento da declaração entender que a via proposta por Saramago não é a mais adequada. Novamente, é só ir aos livros de história da filosofia.

Uma vez que o jornalismo é uma atividade crítica, uma boa sugestão para aguçar o caráter crítico da profissão é o estudo da lógica. Não é aceitável que um profissional que lida com argumentos tenha pouca ideia do que, afinal, é um argumento (uma experiência interessante seria perguntar para jornalistas uma definição de argumento). Com maior domínio da lógica (sobretudo aspectos da lógica informal), o jornalista do Estado poderia indagar a Saramago quais premissas sustentam sua conclusão de que Deus só existe dentro da cabeça daqueles que nele creem. No caso da declaração feita na Itália, seria pertinente perguntar o que sustenta o citado materialismo em relação à evidência.

Existem no mercado bons manuais de lógica que podem dar ao jornalista preciosas noções de argumento, validade ou invalidade de argumentos e, importantíssimo, dicas para evitar falácias. Assim como o estudo da história, é dever de casa do jornalista dominar com alguma eficácia prática a disciplina que está por trás da argumentação, pois querendo ele ou não, os argumentos estarão lá. Logo, a lógica também.

Quando o padre Manuel Morujão, citado no artigo de Bucci, diz que “um escritor da craveira de José Saramago deveria ir por um caminho mais sério”, é provável que esteja correto. Partindo das falas de Saramago, tanto na entrevista ao jornalão paulistano como na Itália, pode-se concluir que o escritor andou ignorando os livros de metafísica. Portanto, não poderia posar de autoridade no assunto.

Os jornalistas, por sua vez, deveriam ir com mais frequência ao estudo da história da filosofia e, podendo aplicar também a usos mais gerais, ao estudo dos aspectos da lógica. Todos ganhariam. A discussão sobre a existência ou inexistência de Deus seria mais precisa e o leitor seria premiado com uma abordagem de qualidade. Já que é para colocar na mesa de debates tal problema teológico, que se faça isso respeitando certos aspectos fundamentais do assunto e que se mantenha o espírito inquisitivo e informado perante as supostas “autoridades”.

(Aluízio de Araújo Couto Júnior, Observatório da Imprensa)

Leia também: “José Saramago e a Bíblia... novamente!”

(Criacionismo)

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