segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Marco regulatório do pré-sal e as diferenças PT-PSDB

Desde que chegou ao poder, Lula tem sido elogiado por ser um continuador do governo supostamente “neoliberal” do ex-presidente FHC. A acusação, além de injusta, é imprecisa do ponto de vista analítico e conceitual. Nem Lula é apenas continuador da obra de FHC; nem FHC e os tucanos são neoliberais.

Se FHC fosse neoliberal teria reformado o Estado e enterrado o patrimonialismo; teria privatizado a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, mudando tudo em bases tais que dificilmente Lula teria como reverter, o que agora está fazendo, a partir de sementes “socialdemocratas” que o governo tucano que o antecedeu plantou.

O elogio tucano a Lula se apóia na linha de continuidade que vinculava a política econômica do governo atual ao anterior. Há diversas outras práticas em que o governo Lula reproduz, tal como na política econômica, de forma mais competente (formação da base de apoio parlamentar; marketing; políticas sociais, etc.), a tecnologia do governo tucano que o antecedeu. Mas, a bem da verdade e da precisão analítica, e até mesmo para auxiliar o desnorteado PSDB na reconstrução da identidade tucana expropriada pelo neopetismo, convém botar os pingos nos “j”…

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que a política econômica em curso desde a implantação do Plano Real consiste em mero equilíbrio do caixa e controle da inflação. Governantes responsáveis devem fazer isso, mesmo sendo de esquerda.

O petismo optou por administrar “estado burguês” sob a vigência de uma economia de mercado e abandonou o receituário da revolução bolchevista que faliu com a extinta URSS. Assim, não restou ao neopetismo alternativa outra, perante a situação falimentar do Estado, que não a de viabilizá-lo financeiramente. É pura contabilidade financeira e política, por questão de sobrevivência no poder.

Lula elogia o desenvolvimentismo dos militares e ressuscita estratégias de governo dos tempos em que Dilma Roussef assaltava bancos e combatia a ditadura. Mas, convém lembrar, que a hiperinflação e a falência do Estado brasileiro são consequências do fracasso do “milagre brasileiro” patrocinado pelo desenvolvimentismo estatista do regime militar. O desenvolvimento patrocinado pelo Estado exauriu os cofres públicos e superendividou o Brasil gerando hiperinflação. Passamos a depender de financiamento externo. Logo, era preciso diminuir despesas e gerar receitas.

Se fosse liberal, FHC teria enxugado o tamanho do Estado e cortado gastos desnecessários. Embora tenha promovido algumas privatizações, incontornáveis naquele contexto histórico, o fato é que FHC fugiu da responsabilidade de reduzir o custo do Estado e equilibrou as contas públicas pela via do aumento brutal da carga tributária. Pagávamos cerca 24% do PIB em impostos quando FHC assumiu em 1995. Passamos a pagar 36% do PIB em impostos quando FHC entregou o bastão a Lula. Sob Lula, passamos a entregar 40% da riqueza que produzimos ao Estado lulopatrimonialista. A fórmula é mesma que o PT já praticava nas prefeituras e estados que governou. Gerar receita via aumento da carga tributária é marca registrada de tucanos e petistas. Serra, nesse aspecto, está à esquerda de Lula.

Há nessa opção, também, um cálculo político do petismo. Não se trata apenas de um cálculo contábil. Se há setor de ponta no capitalismo contemporâneo, este está no setor financeiro transnacional. Lula beijou a mão da banca para chegar à Presidência da República. Se não o fizesse não teria sido autorizado a sentar no trono de FHC. Há quem pense que os detentores do poder de Estado vendem a alma ao diabo depois de chegar lá. De fato, vendem-se “para chegar lá”.

Não deixou de ser irônico, e até mesmo cômico, ouvir os neopetistas, nos anos recentes, usarem a redução do risco-país como argumento em defesa da competência do seu governo. Ora, o risco país cai tanto mais quanto mais Lula oferece garantias de que vai honrar o que devemos aos bancos. Ao garantir a “fome zero” da banca internacional, a cúpula petista assina, também, “um contrato político” com o capital financeiro (assim como faz com outros setores empresariais). As cláusulas implícitas desse pacto preveem o apoio ou a não-oposição à eleição de Dilma, em troca do pagamento das dívidas (no caso do capital financeiro), ou da liberação do crédito barato ou de políticas públicas de apoio (no caso da mídia, capital industrial e agronegócio).

Nada que o tucanato já não tenha praticado com menos competência. A novidade, já nem tão nova, no caso do petismo, está apenas na aliança com esses segmentos do capital, antes por eles execrados como encarnação do demônio. Mas a estratégia de poder de longo prazo tudo justifica. E tudo explica. Lula adernou à direita para chegar ao poder, e seu governo está derivando gradualmente à esquerda, sempre que a correlação de forças e a conjuntura o permitem.

Mas, se até pouco tempo o governo Lula em nada inovara na comparação com o tucanato, a não ser na voracidade com que se atira ao pote do poder e do dinheiro público, o que diferencia tucanos de neopetistas?

A sutil diferença está na concepção que ambos têm sobre o grau de intervenção e participação do Estado na economia e na vida dos cidadãos. O novo marco regulatório da exploração de petróleo no Brasil, recém definido pelo governo Lula, é uma peça pedagógica no sentido de explicitar, não apenas a forma como o governo vai regular a exploração desse combustível fóssil de vida curta; mas, também, no sentido de elucidar o que diferencia tucanos e petistas.

Sob pressão da onda liberal que varreu o mundo nas duas décadas finais do século XX, o presidente FHC patrocinou uma efetiva redução da participação do Estado na economia brasileira, em consonância com a inflexão liberal que a socialdemocracia européia praticou onde governou nesse período. Essa redução ocorreu, tanto através do deslocamento de atividades econômicas do setor público para o privado (privatizações e concessões de serviços), como em aspectos da política econômica, cuja condução implicou da implementação de outra cultura de relacionamento do governo com a economia e a sociedade. A rejeição ao populismo e à irresponsabilidade fiscal; o fim da indexação e do tabelamento de preços; a livre flutuação do câmbio, entre várias outras medidas e posturas praticadas pela equipe do ministro Malan, são apenas alguns exemplos dos avanços, pouco percebidos, que o Brasil experimentou na direção contrária à cultura patrimonialista que marca o relacionamento histórico entre o Estado, a sociedade e o mercado no nosso país.

É exatamente nessas dimensões dos processos econômico, social e político que o governo Lula está patrocinando um lento, gradual e danoso retrocesso político e cultural, ao promover a partidarização do Estado; a sobrevida das oligarquias políticas arcaicas; a volta do clientelismo; o aumento da participação direta do Estado na economia e da intervenção do governo na vida econômica dos cidadãos e das empresas.

A crise econômica global em curso permitiu ao PT pisar no acelerador de uma estratégia que, sob outras circunstâncias, seria mais lenta e gradual. O marco regulatório do pré-sal é o ponto de inflexão nessa mudança de ritmo, e tem implicações ideológicas, mas também eleitorais sobre o tabuleiro de disputa presidencial de 2010.

As teorias são esquemas conceituais, mais ou menos consistentes, que criamos para entender, explicar e administrar as diferentes dimensões da realidade com as quais precisamos lidar. Como a realidade muda e é sempre mais rica do que os esquemas que conseguimos construir na tentativa de entendê-la, manda o bom senso, a experiência e a inteligência, que mantenhamos sempre vivo o espírito crítico e a flexibilidade analítica, de modo a podermos perceber as mudanças e adequar nossa percepção e nossos esquemas teóricos às novas realidades.

Não é preciso abrir mão de convicções para reconhecer que não existe modelo programático ideal; estático e desvinculado da realidade e da cultura de cada nação, que defina de forma inequívoca qual o ponto de equilíbrio recomendável na relação entre o Estado e a sociedade e o mercado. Os resultados produzidos pela onda liberal das últimas décadas do século XX, que sucedeu as experiências totalitárias do nazismo, do fascismo, do comunismo e do modelo falido do estado do bem estar social do século passado, estão sendo questionados.

A recente crise econômica global ofereceu aos defensores da maior participação do Estado na economia e na vida dos cidadãos, outra oportunidade para aplicarem suas receitas. A moderna sociologia da burocracia, no entanto, comprova fartamente, que as organizações públicas ou estatais são menos eficientes do que a iniciativa privada nos serviços que prestam aos cidadãos, contribuintes e consumidores. As empresas privadas, submetidas à lógica da competição e do lucro, ainda que reguladas pelo Estado quando prestando serviços públicos, tendem a ser mais eficientes.

O Brasil não é nunca foi um país capitalista no sentido literal e liberal do conceito. Padecemos do excesso de Estado. Vigora aqui, como bem o demonstrou Raymundo Faoro, falecido correligionário do petismo e cuja obra os petistas deveriam ler, um sistema de dominação de tipo patrimonialista. Nesse sistema, as elites econômicas, políticas e sociais (dentre os quais se incluem a burocracia sindical e as corporações do funcionalismo público que controlam o PT e a CUT), apropriam-se do Estado e dos canais de acesso a ele, para perpetuarem-se no poder e no controle do destino dos recursos públicos.

Essa é a raiz das nossas injustiças sociais, pois é aí que nasce a restrição, tanto da livre atividade econômica geradora de empregos e riqueza, como do acesso das amplas camadas menos favorecidas da população, aos benefícios universais que deveriam ser garantidos a todos pelo Estado. O Estado Paquiderme vampiriza a riqueza produzida por indivíduos e empresas obstaculizando o desenvolvimento do mercado e a geração de empregos. Perpetua-se, dessa forma, a diferença que separa os dois extremos de pirâmide social brasileira.

A grande obra, ainda por ser reconhecida, do ex-presidente FHC, foi ter conseguido avançar significativamente na correção dessa distorção (tarefa hercúlea para mais de uma geração). No entanto, seja pelos pruridos socialdemocratas do tucanato; seja pelo desgaste da batalha pela reeleição; seja por uma avaliação das impossibilidades decorrentes da correlação de forças de então, ou pelos três motivos somados, o fato é que o governo tucano empacou justamente na Reforma do Estado.

Subsistem no Brasil, mais de uma centena de empresas sob controle do governo federal e outras mais sob controle de governos estaduais e municipais. Sobrevive forte, e agora revigorada, uma cultura política geneticamente arraigada na nossa sociedade e iniciativa privada, de voluntária submissão e dependência em relação ao Estado. Não fosse assim, o aumento paulatino da carga tributária nas últimas décadas não teria passado com tanta facilidade e passividade da sociedade.

O conceito de “comunidade solidária” implementado pelos programas sociais de FHC, sob comando de Dona Ruth Cardoso era mais moderno e correto do que o neoclientelismo sem porta de saída do Bolsa Família com que Lula pretende perpetuar os eleitores do petismo através da dependência da eterna mesada do Estado. O marco regulatório da exploração do petróleo tal como criado pelo governo FHC seria mais barato e eficiente para a sociedade brasileira do que o inchaço da Petrobrás que Lula nos deixará como legado. Mas os petistas são mais competentes marqueteiros que os tucanos. Demonizaram as privatizações e encurralaram o PSDB, que não sabe defender o legado de FHC; tão socialdemocrata quanto o petismo.

São esses avanços da “Era FHC” que a “Era Lula” faz retroceder. E sob a cumplicidade e o silêncio ensurdecedor da mídia e das elites econômicas e políticas da nação. Esse é o “contrato político” que permitiu a eleição de Lula. O PT garante acesso ao estado à parte das elites políticas tradicionais; paga o que deve aos bancos e libera crédito fácil às elites empresariais combalidas pela incapacidade de competir abertamente, e com essa carga tributária, na economia globalizada. Como contrapartida, todos fingem que não veem. Ninguém reage à revitalização do padrão estatista de nossa cultura política, patrocinada pela direção política do estamento patrimonialista encastelada no PT.

O ideário liberal não possui representação política relevante no tabuleiro partidário brasileiro. Tucanos e petistas são socialdemocratas. A diferença entre eles é que os tucanos não são patrimonialistas e os petistas o são.

Houve época, na nossa história, em que o pacto dos donos do poder foi comandado por uma aliança do estamento patrimonialista com as oligarquias rurais. Em seguida, ingressaram no pacto, setores do “nosso” capital industrial e financeiro. Em 2002, a elite da burocracia sindical ganhou sua carteirinha provisória do clube de golfe da corporação que controla o Estado. Ante as dificuldades eleitorais de Dilma, a ascensão de Ciro Gomes e Marina Silva, a burocracia petista teme a perda de sua posição na direção executiva do Estado e o risco de perderem a condição de membros permanentes da confraria dos donos do poder.

Temor infundado. Como disse Lula, não haverá candidato de direita na eleição presidencial de 2010. Lula tem razão. Não se vê, no horizonte, ninguém que reúna força social, clareza e vontade políticas para obstaculizar o retrocesso. A candidatura da direita será de esquerda. Quem encarnará o papel? Ciro ou Dilma?
(Opinião e Notícias)

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