quinta-feira, 25 de março de 2010

No Princípio: Como Interpretar Gênesis 1

“No princípio criou Deus os céus e a Terra.” (Gênesis 1:1)
Com tal beleza, majestade e simplicidade começa o relato da Criação em Gênesis. Porém, uma análise do capitulo l de Gênesis não é tão simples e direta como uma leitura casual do texto bíblico poderia sugerir. A interpretação moderna da cosmogonia (estudo das origens) bíblica em Gênesis l é extremamente complicada, dividida entre uma interpretação não-literal e a literal. Vamos brevemente descrever sete destas interpretações e avaliar cada uma à luz dos dados bíblicos.

Interpretações principais de Gênesis 1

Interpretações não-literais

Estudiosos que apoiam uma interpretação não-literal de Gênesis abordam a questão de diferentes modos. Alguns consideram Gênesis l como mitologia’; outros consideram-no poesia2; alguns tomam-no como teologia3; ainda outros o consideram como simbolismo.4
Comum a todas estas interpretações não-literais é a suposição de que o relato em Gênesis não é um relato literal e histórico da Criação.

Interpretações literais

Aqueles que aceitam literalmente o relato da Criação também diferem em sua abordagem da cosmogonia bíblica de Gênesis l. Vamos indicar três pontos de vista.
Teoria de um intervalo ativo. Esta opinião é também conhecida como a teoria de ruína-restauração. Segundo esta opinião,5 Gênesis 1:1 descreve uma criação originalmente perfeita a um tempo desconhecido (milhões ou bilhões de anos atrás). Satanás era o regente deste mundo, mas por causa de sua rebelião (Isaías 14:12-17), o pecado entrou no Universo. Deus condenou a rebelião e reduziu o mundo ao estado arruinado e caótico descrito em Gênesis 1:2. Os que mantêm esta opinião traduzem Gênesis 1:2 como “a terra tornou-se sem forma e vazia”.
Gênesis 1:3 e os versos seguintes apresentam então o relato de uma criação posterior na qual Deus restaura o que tinha sido arruinado. A coluna geológica é usualmente inserida no período da primeira criação (Gênesis l: l) e o caos subsequente, e não em conexão com o Dilúvio bíblico.
Teoria de uma criação prévia “sem forma e vazia”. Segundo esta interpretação os termos hebraicos tohu (“sem forma”) e bohu (“vazia”) em Gênesis 1:2 descrê vem o estado sem forma e sem conteúdo da Terra. O texto se refere a um estado anterior à Criação mencionada na Bíblia. Esta opinião tem duas variantes principais baseadas em duas análises gramaticais diferentes.
A primeira variante considera Gênesis 1:1 como uma cláusula dependente, em paralelo com os relatos da Criação extra-bíblicos do Oriente Próximo.6 Daí a tradução proposta: “Quando Deus começou a criar os céus e a Terra. Portanto, Gênesis 1:2 equivale a um parêntesis, que descreve o estado da Terra quando Deus começou a criar (“a Terra estando…”) e Gênesis 1:3 em diante descreve a obra criadora efetiva (“E Deus disse…”).
As outras variantes principais consideram Gênesis 1:1 como uma cláusula independente, e como um sumário ou introdução formal ou título que é então ampliado no resto da narrativa.7 Gênesis 1:2 é visto como uma cláusula circunstancial ligada com o verso 3:”A Terra, porém, era sem forma e vazia…. Disse Deus: ‘Haja luz’.”
Deste ponto de vista, apoiado por qualquer das análises gramaticais mencionadas acima. Gênesis não oferece um começo absoluto de tempo para o cosmos. Criação a partir do nada não é implicada, e não há indicação da existência de Deus antes da matéria. Nada é dito da criação da matéria original descrita no verso 2. Trevas, abismo e águas de Gênesis 1:2 já existiam no começo da atividade criadora de Deus.
Podíamos mencionar de passagem uma outra opinião pré-Criação; esta toma o verso 2 como uma cláusula dependente “quando…”, mas difere da primeira variante na interpretação dos termos tohubohu, e os termos para “trevas” e “abismo” — todos significando “nada”. Assim o verso l é visto como um sumário; o verso 2 diz que inicialmente não havia “nada”; e o verso 3 descreve o começo do processo criador.8
Teoria de um estado inicial “sem forma e vazio”. Uma terceira interpretação literal da cosmogonia bíblica é a de um estado inicialmente “sem forma e vazio”. Esta é a opinião tradicional, tendo o apoio da maioria dos intérpretes judeus e cristãos através da história.9 Segundo esta interpretação. Gênesis 1:1 declara que Deus criou do nada a matéria original chamada céus e Terra no ponto de seu começo absoluto. O verso 2 esclarece que quando a Terra foi primeiro criada ela estava num estado de tohubohu — sem forma e vazia. O verso 3 e os versos seguintes então descrevem o processo divino de dar forma ao informe e de encher o vazio.
Esta interpretação tem duas variantes. Alguns consideram os versos l e 2 como partes do primeiro dia de uma semana de sete dias. Podemos chamá-la a interpretação “sem intervalo”.10 Outros vêem os versos l e 2 como uma unidade cronológica separada por um intervalo de tempo do primeiro dia da Criação descrito no verso 3. Esta opinião é usualmente chamada a do “intervalo passivo.”"

Avaliação

O espaço não permite uma avaliação pormenorizada de todos os prós e centras de cada opinião aqui resumida, mas apresentaremos o esboço dos dados bíblicos que se referem às teorias sobre a origem da matéria e da vida e sua existência primitiva.

Interpretações não-literais

Ao considerar todas as interpretações não-literais e não-históricas, precisamos levar em conta dois fatos bíblicos significativos:
1. O género literário de Gênesis 1-11 indica a natureza intencionalmente literal da narrativa.12 O livro de Gênesis é estruturado pelo termo gerações (hebraico toledoth) em relação com cada seção do livro (13 vezes). Este é um termo usado alhures em conexão com genealogias que têm que ver com um relato exato de tempo e história. O uso detoledoth em Gênesis 2:4 mostra que o autor pretendia que a narrativa da Criação fosse tão literal como o resto das narrativas de Gênesis.’3 Outros escritores bíblicos tomam Gênesis 1-11 como literal. Com efeito, todos os escritores do Novo Testamento se referem a Gênesis 1-11 como história literal.’4
2. Evidência interna também indica que o relato da Criação não deve ser tomado simbolicamente como sete longos períodos segundo o modelo evolucionista — como é sugerido tanto por eruditos críticos como evangélicos. Os termos tarde e manhã significam um dia literal de 24 horas. Alhures nas Escrituras, o termo dia com um número ordinal é sempre literal. Se os dias da Criação são simbólicos. Êxodo 20:8-11 que comemora um Sábado literal não tem sentido. Referências à função do Sol e da Lua para sinais, estações, dias e anos (Gênesis l: 14), também indicam tempo literal e não simbólico. Portanto, devemos concluir que Gênesis l: l a 2:4a indica sete dias literais, consecutivos, de 24 horas.’5
Embora as interpretações não-literais devam ser rejeitadas no que negam (a saber, a natureza literal e histórica do relato de Gênesis), não obstante possuem um elemento de verdade no que afirmam. Gênesis 1-2 têm que ver com mitologia — não para afirmar uma interpretação mitológica, mas como polémica contra a antiga mitologia do Oriente Próximo.16 Gênesis 1:1 a 2:4 provavelmente são estruturados de um modo semelhante à poesia hebraica (paralelismo sintético),17 mas poesia não nega historicidade (ver, por exemplo. Êxodo 15, Daniel 7 e aproximadamente 40 por cento do Antigo Testamento, que são em poesia.) Escritores bíblicos frequentemente escrevem em poesia para afirmar historicidade.
Gênesis 1-2 apresentam uma teologia profunda: doutrinas de Deus, Criação, humanidade. Sábado, etc. Mas nas Escrituras, teologia não se opõe à história. Com efeito, a teologia bíblica tem sua raiz na história. De igual modo há um simbolismo profundo em Gênesis l. Por exemplo, a linguagem do Jardim do Éden e a ocupação de Adão e Eva claramente aludem ao simbolismo do santuário e ao trabalho dos levitas (ver Êxodo 25-40).” Assim o santuário do Éden é um símbolo ou tipo do santuário celestial. Mas porque aponta para algo diferente não diminui sua realidade literal.
Gerhard von Rad, um erudito crítico que não aceita o que Gênesis l afirma, ainda assim confessa honestamente: “O que é dito aqui [Gênesis l] é para ser tomado inteiramente e exatamente como está.”19
Portanto, nós afirmamos a natureza literal e histórica do relato de Gênesis. Mas qual interpretação literal é correia?

Interpretações literais

Primeiro, precisamos de início rejeitar a teoria de ruína-restauraçao ou “intervalo ativo” puramente por razões de gramática. Gênesis 1:2 claramente encerra três cláusulas nominais e o sentido fundamen-tal de cláusulas nominais em hebraico é algo fixo, um estado,20 não uma sequência ou ação. Segundo as regras da gramática hebraica, precisamos traduzir “a Terra era sem forma e vazia”, e não “a Terra tornou-se sem forma e vazia”. Assim a gramática hebraica não deixa lugar para a teoria de um intervalo ativo.
Que dizer da interpretação de uma criação prévia “sem forma e vazia” na qual o estado de tohu-bohu de Gênesis l :2 precede a criação divina? Alguns apoiam essa teoria traduzindo o verso l como uma cláusula dependente. Mas a melhor evidência favorece a leitura tradicional de Gênesis 1:1 como uma cláusula independente: “No princípio criou Deus os céus e a Terra.” Isto inclui a evidência dos acentos no hebraico, todas as antigas versões, considerações léxico-gramaticais, sintáücas e estilísticas, e comparação com antigas lendas do Oriente Próximo.21 O peso da evidência me leva a reter a leitura tradicional.
Outros suportam a teoria de uma criação prévia “sem forma e vazia” interpretando Gênesis 1:1 como um sumário do capítulo todo (o ato da criação só começando no verso 3). Mas se Gênesis l começa apenas com um título ou sumário, então o verso 2 contradiz o verso 1. Deus cria a Terra (verso l), mas a Terra existe antes da Criação (verso 2). Esta interpretação não pode explicar a referência à existência da Terra já no verso 2. Rompe a continuidade entre os versos l e 2 no uso do termo terra.12 Concluo, portanto, que Gênesis 1:1 não é simplesmente um sumário ou título do capítulo todo.
Contra a sugestão de que todas as palavras em Gênesis 1:2 simplesmente implicam “nada”, deve ser dito que o verso 3 e os versos seguintes não descrevem a criação da água, mas assume sua existência prévia. O termo tehom — “abismo” — combinado com tohubohu (como em Jeremias 4:34) não parecem referir-se ao nada, mas à Terra num estado sem forma e vazia coberta de água.
Isto nos leva à teoria de um estado inicialmente sem forma e vazio. A sequência do pensamento em Gênesis 1:1-3 tem levado a maioria dos intérpretes cristãos e judeus a esta opinião, que por conseguinte é chamada a opinião tradicional.

A sequência natural de Gênesis 1-2

Concordo com esta opinião, porque acho que só esta interpretação obedece à sequência natural destes versos, sem contradição ou omissão de qualquer elemento no texto.
A sequência do pensamento em Gênesis 1-2 é como segue:
a. Deus antecede a criação (verso l).
b. Há um princípio absoluto do tempo com relação a este mundo e às esferas celestes que o cercam (verso l).
c. Deus cria os céus e a Terra (verso l), mas para começar eles são diferentes do que agora, são “sem forma” e “vazios” (tohubohu; verso 2). d. No primeiro dia da semana de sete dias da Criação, Deus começa a formar e a encher o tohubohu (verso 3 e os versos seguintes).
e. A atividade divina de “formar e criar” é efetuada em seis dias sucessivos de 24 horas cada.
f. No final da semana da Criação, os céus e a Terra estão terminados (Gênesis 2: l). O que Deus começou no verso l está agora finalizado.
g. Deus descansa no sétimo dia, abençoando-o e santificando-o como um memorial da Criação (2:1-4).

A ambiguidade do quando

Os pontos acima estão claros na sequência do pensamento de Gênesis 1-2. Não obstante, há um aspecto crucial neste processo da Criação que o texto deixa aberto e ambíguo: Quando ocorreu o princípio absoluto dos céus e da Terra no verso l? Foi no começo dos sete dias da Criação ou algum tempo antes? É possível que a matéria bruta dos céus e da Terra em seu estado informe fosse criada muito tempo antes dos sete dias da semana da Criação. Esta é a teoria do “intervalo passivo”. Também é possível que a matéria bruta descrita em Gênesis 1:1-2 esteja incluída no primeiro dia da semana da Criação. Esta se chama a teoria do “não intervalo”.
Esta ambiguidade no texto hebraico tem implicações na interpretação do Pré-cambriano da coluna geológica, se a gente equaciona o Pré-cambriano com a “matéria bruta” descrita em Gênesis 1:1-2 (naturalmente esta equação está sujeita a debate). Há a possibilidade de um Pré-cambriano recente, criado como parte da semana da Criação (talvez com a aparência de idade alta). Há também a possibilidade de que a “matéria bruta” fosse criada no princípio absoluto da Terra e das esferas celestes circundantes, talvez milhões ou bilhões de anos atrás. Este estado inicial informe e vazio é descrito no verso 2. O verso 3 e os versos seguintes então descrevem o processo de formar e encher durante a semana da Criação.
Concluo que o texto bíblico de Gênesis l deixa margem tanto para (a) um Pré-cambriano recente (criado como parte dos sete dias da criação) ou (b) rochas muito mais antigas e sem fósseis, com um longo intervalo entre a criação da “matéria bruta” descrita em Gênesis 1:1-2 e os sete dias da semana da Criação descrita no verso 3 e nos versos seguintes. Mas tanto num caso como no outro, o texto bíblico requer uma cronologia breve para a vida na Terra. Não há margem para um intervalo de tempo na criação da vida na Terra: ela surgiu do terceiro ao sexto dias literais e consecutivos da semana da Criação.

(Sétimo Dia)

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