Patrício, no auge de seus trinta e dois anos de solterismo, era um convicto machista. Mantinha com orgulho um blog onde descrevia teorias do machismo, muitas delas de sua própria autoria.
Dedicava pelo menos uma hora e meia por dia para atualizar o blog e responder aos insultos das feministas e demais mulheres ofendidas e, acredite, não era nada difícil uma mulher se ofender com o teor de seu sítio. Elas odiavam, especialmente, os artigos nos quais ele surrava a falta de inteligência das mulheres.
Aliás, eis a parte que ele mais adorava: espancar o que ele chamava de falta de cérebro feminino.
Deleitava-se escrevendo frases do tipo: "Mulher inteligente é aquela que consegue controlar o painel do micro-ondas"; "Mulher inteligente é aquela que sabe, de cabeça, pelo menos duas receitas de pratos salgados e uma de sobremesa. Exigir mais que isso é pedir o impossível." Essas e outras pérolas da mente machista faziam seu blog alvo de feministas.
Na manhã fresca de uma segunda feira, Patrício vestiu uma camiseta branca e um jeans surrado. Era seu dia de folga e pretendia estrear um "gol bolinha" que havia comprado no sábado. Uma verdadeira bagatela. Mal acreditava que havia economizado uns cinco mil reais na compra daquele carro.
A princípio, chegou até a desconfiar da origem do veículo, mas o vendedor apresentou uma série de extratos do Detran, atestando a regularidade do carro. Não perdeu a chance, comprou o automóvel com suas economias. Até uma mulher teria achado aquilo uma ótima oportunidade de negócio, ele pensou, não podia perdê-lo.
Claro, antes de fechar o negócio, fez toda a conferência mecânica do carro e, estando tudo perfeito, selou o trato.
Com recibo assinado na mão, meteu-se no gol bolinha, de cor branca, e saiu pela cidade. Abriu bem a janela e sentiu o vento bater no rosto. O carrinho chegava a cheirar a novo. Que maravilha.
Ali pelo centro, o trânsito afunilou um pouco, ficando mais lento. Percebeu, então, que estava indo para uma "batida policial". Que mal tinha? Nenhum, pois a documentação de seu carro novo e a pessoal estavam em ordem.
Obra do acaso - ou não - seu carro foi um dos barrados.
- Documento pessoal e do veículo, por favor. - Disse o policial com a etiqueta "Almeida" colada na farda azulada.
Patrício atendeu sorridente. Mesmo tudo regular ficou nervoso olhando a expressão impassiva do Policial que foi até a traseira do golzinho e conferiu os dados com a placa.
- Tudo certo seu guarda? - perguntou Patrício quando o policial voltou para a janela aberta do seu carro.
- Sim. Tudo em perfeita ordem. - disse o policial sem dar o mínimo sorriso. - Pode seguir.
- Obrigado, seu guarda. - respondeu Patrício relaxando. Aquilo apenas confirmava que havia feito um negócio da China. Não havia nada de errado com seu carro novo.
- EI ESPERE ! - gritou uma voz feminina quando Patrício já havia ligado o motor.
Uma policial de cabelos negros presos embaixo da boina parou no vidro do carro, do lado do carona. Patrício abaixou o vidro para atender a policial etiquetada como "Jalinsk".
"Aff, uma mulher!", pensou ele enquanto sorria amareladamente e ainda com o motor ligado. "Uma mulher PM? Acho que ela tá na corporação por ter neurônios suficientes para não se perder no caminho da cozinha quando vai buscar cafezinho para os policiais de verdade." Riu consigo mesmo enquanto curtia seus pensamentos machistas.
- Desligue o motor, por favor - ordenou a policial e Patrício obedeceu sem tirar o sorriso disfarçado da sua cara lavada. - Quero só verificar um detalhe, se o senhor não se importar - disse ela educadamente.
- Claro, claro. Sem problema - respondeu saindo do carro.
Quando fechou a porta, viu que a policial Jalinsk estava abaixada perto da placa traseira do carro e ouviu quando ela disse com tom autoritário para o policial Almeida:
- Você não conferiu o lacre?
- Não, Capitã - respondeu o homem.
"Molenga." Pensou Patrício parando ao lado deles. "Deixando uma mulher falar dessa maneira? Ela só deve entender o que é lacre de tapeware, vai lá entender de lacre de placas."
- Abre o capô para nós, por favor - disse a oficial se levantando.
Patrício obedeceu prestativo. "Tinha que ser mulher." pensou ele observando a policial debruçada sobre o motor. "A anta me faz perder tempo aqui, fingindo para os colegas que entende de alguma coisa."
- O Senhor comprou onde este carro? - perguntou ela.
- Na pedra - respondeu o homem sem perder a compostura.
- Pagou quanto? - continuou o questionário e Patrício respondeu. - Mas isso não é bem abaixo do valor desse carro?
- Sim, senhora. Uns cinco mil - respondeu Patrício e ousou um tom mais desafiador. - Agora é crime fazer um bom negócio?
- Agora não. Sempre foi - disse ela. - O senhor está preso por receptação culposa. Esse veículo está com o chassi adulterado e documentos frios. É um carro clonado.
Patrício ficou branco, azul, verde e amarelo, não necessariamente nessa ordem. Não conseguiu responder nada enquanto xingava mentalmente aquela "policial burra" à sua frente. Não dá para publicar os impropérios que passaram na mente de Patrício.
- Clonado? Como assim? - conseguiu finalmente dizer.
- Clonado quer dizer clonado. Tem por aí um carro igualzinho ao seu, só que legal, legítimo. Aí algum espertinho rouba esse carro, duplica os documentos, placas, etc., e põe o carro roubado pra rodar.
O policial Almeida chegou com um extrato na mão, tirado a partir de um número que a capitã lhe forneceu.
Ela analisou bem o documento e disse:
- Passei para o soldado Almeida o chassi original que achei gravado ali. Esse carro é produto de roubo ocorrido há sete dias - Levantou os olhos para Patrício. - Como eu disse, o senhor está preso.
Almeida foi algemando o pobre coitado, virando suas mãos para trás. Não conseguiu esboçar qualquer reação, mas sua vontade era chutar a cara da policial.
"Sem problema", pensou, já sacolejando atrás do camburão que partia em retirada. "Na delegacia eu explico pro delegado o que essa anta não consegue entender."
Chegaram na 13ª DP. Puxaram Patrício pelos fundinhos e foram levando o pobre diabo algemado pelo corredor gelado. Sentaram-no num banco duro, ao lado de um bêbado que fedia qualquer coisa que só podia ser denominada como carniça, uma mistura de pinga com arroz azedo.
O bêbado dormia recostado na parede, roncando de boca aberta e babando pela barba preta e rala.
- A Dra. Mirian vai atendê-los - disse um escrivão civil saindo de um dos gabinetes da Delegacia.
- Doutora? - disse Patrício num sobressalto. - Doutora?
- É, Doutora - respondeu o escrivão enquanto a capitã Jalinsk entrava na sala.
Com cara de desconcertado, Patrício foi puxado pela algema e jogado numa cadeira em frente à delegada de cabelos loiros. Ela ouvia as explicações da Policial Militar. "Como que uma mulher passa num concurso pra delegado?"
A Dra. Mirian virou-se para Patrício e ele explicou sua versão.
- E onde estão os tais documentos que o vendedor apresentou para o senhor, demonstrando que o veículo era legal?
- Joguei no lixo depois de ver que estava tudo perfeito e fechar o negócio - sequer conseguiu olhar para a Delegada, que torcia o nariz diante de uma versão tão estúpida.
- O senhor acha que sou burra? Que sou palhaça? - perguntou a delegada num tom de voz mais que calmo.
"Sim. Burra, anta, idiota, etc., et.c, etc."
- Claro que não. Mas eu juro que é verdade - disse ele preferindo não insultar a delegada.
- O senhor jura? Acho que o senhor está confundindo. Isso aqui é uma delegacia, não uma igreja. Eu sou uma delegada, não um padre.
Patrício queria esganar a delegada que falava com uma voz quase melodiosa, de tão educada.
- Eu sei - disse ele contendo um turbilhão de xingamentos.
- Então o senhor tinha plena ciência da origem ilícita do veículo? - ela perguntou.
- Claro que não - disse ele fazendo cara de coitado.
- Mas pelo menos suspeitava disso, por causa do preço que foi oferecido?
- Sim, tanto que pedi os documentos para provar que o veículo era quente.
- Ah sim - a delegada recostou-se na cadeira. - E onde estão os tais documentos do Detran que o vendedor mostrou ao senhor.
- Joguei. Eu já disse - Patrício parecia um pinto molhado encolhido na sua cadeira de couro rasgado.
- Claro, claro. O senhor está preso. Vamos fazer o flagrante. O senhor tem advogado?
- Tenho um amigo que é advogado.
O escrivão o levou para uma sala e Patrício ligou para o colega.
- Tibúrcio - disse ele no telefone. - Comprei uma droga dum carro roubado. Tô preso, vem me soltar.
- Que coisa hein, Patrício - disse a voz do outro lado da linha. - Olha, eu só mexo com direito tributário, não entendo patavina de penal. Mas mando um dos melhores colegas que tenho nessa área. Só esperar.
E esperaram. Meia hora depois uma mulher de cabelos negros, vestida com uma saia e terno marrons, muito discreta e de pasta na mão, entrou na sala onde estava Patrício.
- Sr. Patrício? - disse ela estendendo a mão.
"Aff, me mandaram a secretária do tal advogado."
- Sim - levantou-se algemado.
- Sou a Dra. Liana.
- Doutora? - olhou, desesperado.
- Sim. Conte-me o que aconteceu - sentou-se em frente ao cliente.
Patrício estava novamente nas mãos de uma mulher burra e ignorante, como ele as conceituava. Para o machista, a advogada à sua frente desconhecedora do universo "homano" e de como funcionava a Pedra, onde se vende os veículos.
Sem ter outra saída, contou sua versão para a advogada.
- Você foi um idiota jogando os documentos do Detran e mais idiota ainda tendo falado quanto pagou pelo carro - disse ela enquanto abria o código penal em seu colo e leu: - Parágrafo terceiro do artigo cento e oitenta: adquirir coisa que por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço deve presumir-se obtida por meio criminoso.
- Não entendi porcaria nenhuma - resmungou Patrício encolhendo-se no banco surrado.
- Significa que quando alguém oferece uma coisa muito abaixo do que realmente vale é porque tem alguma coisa estranha. A pessoa que presume isso e mesmo assim compra a coisa, comete o crime de receptação culposa. Ela não tem certeza que é produto de crime, mesmo assim se arrisca.
- Aff! Mas eu pedi os documentos do Detran pro cara.
- E cadê os documentos? - Perguntou a Dra. Liana, sapateando o salto bico fino no chão.
Patrício deu de ombros, com cara de cachorro molhado.
- Pois é. A delegada acha que você sabia da origem ilícita, por isso tá detendo você até agora. Ela tem a esperança de você dedurar os outros membros da quadrilha.
- Quadrilha? Que quadrilha doutora, sou homem honesto, trabalhador, pagador de imposto.
- Eu sei... eu sei... - acalmou ela. - Vou convencer a delegada disso. O crime de receptação culposa é de menor potencial ofensivo...
- Menor o quê?
- Esqueça os detalhes técnicos, Patrício - cortou-lhe a advogada. - Deixe isso pra quem conhece, ou seja, pra mim.
Patrício queria dar um soco no olho da advogada. Era inadmissível estar nas mãos de uma mulher que se julgava inteligente.
- Então - continuou ela, - crimes desse tipo nem precisam de flagrante. Faz-se um Termo Circunstanciado de Ocorrência e você sai livre agora.
O moribundo só entendeu a parte do "sai livre agora", o resto era receita de yakissoba escrita em japonês.
- Eu saio agora?
- Sim. Vou tentar - fechou o código em seu colo. - Vou conversar com a delegada. Se eu não conseguir convencê-la, aí vou ter que pedir liberdade provisória ou relaxamento da prisão para a juíza. Em seguida, a Promotora dá o parecer e você está na rua.
- JUÍZA? PROMOTORA? - exaltou-se Patrício.
- Sim... algum problema?
"Isso aqui é o inferno." Pensou enquanto murchava no banco. "Ou é a ilha de Lesbos, sei lá. É um complô, uma armação das feministas que frequentam meu blog. Não pode uma mulher passar num concurso pra promotor ou juiz. Agora os desembargadores e procuradores estão apadrinhando as filhas, sobrinhas, enteadas, seja lá o que for..."
- Não - respondeu patrício com a voz afinando. - Não sabia que era promotora e juíza que atendiam essa DP.
- É sim. Muito boas por sinal. As melhores que já passaram pela vara criminal nos últimos anos.
A Dra. Liana deu o preço de seus serviços para Patrício que sentiu novamente o ventre remexer e, fechado o negócio - onde foram para o ralo os cinco mil reais economizados na compra do veículo e descobriu que havia perdido o carro, sem chance de recuperar algo que era produto de roubo e não lhe pertencia. A advogada se levantou e foi para a sala da delegada. Devem ter tricotado os primeiros quinze minutos e depois discutido o mérito da questão.
Meia hora depois, voltou para a sala do pobre diabo que recitava em sua mente frases de desdém à raça "mulherana". Ela disse:
- Você está livre. A Dra. Mirian vai elaborar um termo circunstanciado e você vai responder a acusação só no Juizado Especial de Pequenas Causas Criminais. Ali, rapidinho, provamos sua inocência e você não corre nenhum risco de ser preso, mesmo se, numa remota possibilidade, for condenado.
O alívio de Patrício foi tão grande que ele quase pulou da cadeira.
- Ai, doutora, que bom que o Tibúrcio mandou a senhora - quando se deu conta já tinha reconhecido a capacidade da advogada e estava quase chorando na frente dela.
Se recompôs e fez uma cara séria - não sem antes enxugar uma lágrima maldita que escapou de sua cara de macho imaculado. Homem não chora.
- Obrigado, doutora - parecia um general, tanto na voz como na postura.
Depois de encerrado todo o procedimento policial, voltou para casa de carona com a advogada e deixou com ela três cheques como pagamento por seus serviços, que cobriam tanto a liberação como futura atuação perante o Juizado Criminal que viria a seguir.
Tomou um bom banho, descansou a mente e depois foi atualizar seu blog. Olhava a tela do computador pensando no que escrever. Pensou por alguns minutos e finalmente sorriu.
Escreveu o título para seu novo artigo: "Não existem mulheres inteligentes, porém, elas são muito bem relacionadas, apadrinhadas e conseguem se comunicar entre si. Se não cuidarmos, elas vão dominar o mundo." Desceu a lenha na mulherada, sem contar os detalhes de sua aventura naquele dia, em que mulheres de extrema capacidade ocupavam, merecidamente, cargos e funções de real importância para a sociedade.
Dênis Cruz
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